FC – Adhemar, você está com quantos anos? Quantos cinemas você administra hoje?
AO – Eu tenho 55 anos, estamos trabalhando hoje em 21 complexos, são 83 salas, e até o ano que vem estaremos com 130 salas.
FC – Quantos municípios?
AO – São Porto Alegre, Tubarão, Curitiba, São Paulo, Santos, Rio, Juiz de Fora e Fortaleza. E vamos começar agora em João Pessoa, Florianópolis, São Gonçalo e Cotia, vão ser 13 municípios.
FC – Nossa vontade é que essa entrevista seja não só sobre o exibidor Adhemar Oliveira, mas também sobre o cinéfilo Adhemar. Porque o fascínio do cinema pode ser um jeito de definir também o exibidor.
AO – Bem, eu vou contar a minha história. Eu nasci num parque de diversões. Meu pai era dono do parque e viajava pelas cidades, mas parava em Jabuticabal ou Sertãozinho para os filhos fazerem as provas de final de ano. Eu aprendi a ler em dez cartilhas diferentes, porque fazia um mês de estudos em cada cidade, já que o parque se deslocava todo mês. Então, a minha relação com o cinema foi quase nenhuma na infância, a não ser ver filmes do Chaplin projetados em paredes brancas – nem era dentro do cinema. Essa relação foi começar na adolescência, pois para estudar eu ficava preso no colégio Marista, onde havia cinema. No colegial, em outra cidade, Ourinhos, eu fiz um cineclube na quadra do colégio, e passei a noite vendo filmes em 16 mm. Mudei-me pra São Paulo, me inscrevi no vestibular e entrei na USP em Ciências Sociais. Lá existia um cineclube chamado Barraco, do qual eu participava. No segundo ano da faculdade, entrei num concurso no Banco Central, que tem sede na Avenida Paulista, e montei um cineclube lá dentro. Terminei a faculdade e não queria mais ficar no Banco Central. Aí pedi demissão, não queriam me dar, mas eu briguei e consegui sair. E fui convidado pelo Antonio Gouveia Jr. para dirigir o cineclube Bexiga, que ele tinha montado junto com o Arnaldo Golo, isso em 1980. Fui dirigir o cineclube Bexiga porque tinha conhecido o Gouveia, o cineclube já existia há seis meses, ficava cheio de gente e mesmo assim as contas não fechavam. Eu dirigi o Bexiga por um ano. Depois eu queria ir embora de São Paulo, queria ir pro México fazer pós-graduação. O que eu queria, na verdade, era estudar com o Octavio Paz, queria ir pro México na maluquice, tinha terminado a faculdade e queria ir embora. Vim para o Rio e, quando cheguei aqui, o Mauricio Azedo tinha criado o Cineclube Macunaíma, então o pessoal me procurou para fazer a programação. Daí, durante dois anos eu programei o Macunaíma e vivi disso, porque eu tinha uma remuneração de acordo com a bilheteria. Fiquei dois anos fazendo curso, fazendo teatro, acabei ganhando dois prêmios de teatro.
FC – Você ganhou prêmio de teatro como ator?
AO – Não, foi pelo texto, ganhei a premiação do Inacen num concurso de dramaturgia infantil. Foi o primeiro auto de Natal que não foi montado pela igreja ou pelo pessoal ligado à igreja nos Arcos da Lapa – foi o primeiro e o único. A Celina Sodré criou esse concurso e eu ganhei. O Dom Eugênio Sales terminava dando uma benção cercado por duzentos palhacinhos. Eu acho que ele não gostou muito, porque no outro ano voltou a fazer no modelo da igreja. Aquele foi o primeiro e o único concurso. Aí eu bandeei de vez quando achamos o cinema pra fazer o cineclube, e o plano de ir embora do país foi abandonado. Em 1985 começou o Estação, numa sala de cinema da Cooperativa Brasileira de Cinema, que antes se chamava Coper Botafogo. Isso durou de 1985 até 1993, passando pelo Cine Paissandu, o Cinema 1 e a Mostra do Banco Nacional. Aí eu voltei a São Paulo a pedido do Banco Nacional, porque eles já tinham investido duas vezes lá e não tinha dado certo, tinham investido no Bexiga e na Sala Cinemateca, em Pinheiros, e não tinha dado certo. Então eu fui montar o Espaço Banco Nacional, na Rua Augusta.
FC – Quando foi que você começou a participar de cineclubes?
AO – Eu fiz um no colégio. Depois eu entrei num que já existia, o cineclube Barraco, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP. Eu só participava, nunca fui dirigente nem nada. Aí montei um movimento no Banco Central, que foi a origem do Sindicato dos Trabalhadores do Banco Central. Era um jornal chamado Ovo e um cineclube dentro do próprio prédio do Banco Central, em que a gente exibia cópias que existiam em 16mm.
FC – Parece que você começou a sua cinefilia ao mesmo tempo em que começou o cineclubismo.
AO – Foi simultâneo, lá no colégio. Porque, diferente de pessoas que iam ao cinema na primeira infância com uma avó ou uma tia, eu já tinha a diversão em casa, que era o meu parque: era o trem fantasma, a roda gigante, o chapéu mexicano.
FC – Você tem relação com ciganos?
AO – Com o parque, eu já estive acampado junto com circos e ciganos quando era criança, e a gente via bem qual era a diferença das três infâncias. A infância do parque é mais ligada à diversão pela diversão. A infância do circo era dura, porque eles trabalhavam e ensaiavam, e a dos ciganos era o far niente. Eu já estive acampado com famílias distintas que tinham em comum a mobilidade, o não enraizamento, e acho que o parque pesa na minha formação, por proporcionar diversão e saber gerenciar. Já me perguntavam coisas do tipo: “Como você nunca fez faculdade de administração ou economia”, se eu tenho noção de administração? Essa noção veio do parque, eu fui bilheteiro aos sete anos – eu já sabia somar e fechar uma bilheteria com sete anos de idade, sabia como funcionava.
FC- O Parque rodava por onde? Era só no estado de São Paulo?
AO – Era o estado de São Pulo todo, seguindo os períodos das safras, como a safra do açúcar, a safra do café, ou indo às feiras agropecuárias e ao litoral na época de férias. Então era o estado de São Paulo todo, mais o norte do Paraná e o sul de Minas. Eu já estive em quase todas as cidades do interior de São Paulo.
FC – Então a sua aproximação do cineclubismo era motivada pela diversão.
AO – Era pela diversão e pelo caráter organizativo. Quando eu morava em Ourinhos já adolescente, pegava um ônibus, fazia seis horas de viagem, chegava às seis da manhã em São Paulo, fazia hora, assistia uns quatro ou cinco filmes, pegava o ônibus e voltava de noite para Ourinhos. Eu me considero um migrante cultural, porque eu fui atrás de coisas que me interessavam. Eu me considero um migrante não econômico que tentou arrumar um emprego em São Paulo. Eu vim com vontade de estudar, mas também por morar em um lugar que não ofertava nada em termos culturais. Aí eu descobri em São Paulo que tinha que trabalhar, porque eu não tinha grana para usufruir da cidade. Então, foi de 1975 até 1978 que procurei trabalhar em empregos melhores, como no SESC, no Banco Central. Eu freqüentei pelo menos dois anos e meio o MIS, que tinha uma programação enorme e gratuita – e a programação do MIS era basicamente brasileira. Então, eu fiz dois anos de programas intensos de ver filmes. Eu tinha essa ganância, essa vontade de ver coisas que não tinha lá na minha cidade – na época havia só dois cinemas, que trabalhavam somente à noite.
FC – Você gostava de ver o quê?
AO- Nessa época eu gostava do cinema italiano, foi o que me formou, do cinema francês, Pasolini e o neo-realismo todo, tinha muitas cópias disponíveis dos filmes. Antes, foi com o Chaplin que comecei a ver e gostar de filmes. Eu não gosto de ser pai condutor, os meus filhos podem ver o que quiserem, e quando o meu filho tinha 14 anos, ele voltou da locadora com um punhado de filmes do Chaplin: “Pai, esse cara é um gênio!”. Outro dia me pediram uma lista dos “filmes da minha vida” e eu fiz. Tinha o Chaplin, tinha Amarcord, do Fellini, Uma mulher para dois, do Truffaut, também botei um do Mizoguchi… De todos aqueles filmes mais “cabeça” eu tenho certa distância. Eu até entendo o valor deles, entendo que adorem, mas não me bate como espectador. E como comprador de filme também: se forem olhar os filmes que eu compro, eles têm a ver com isso. Dificilmente eu vou comprar um filme do grego Theo Angelopoulos, por exemplo. Eu tenho um padrão que foi formado pelo meu gosto.
FC – E filmes brasileiros, você via que gêneros?
AO – Todos. Eram programações de várias épocas, eu me lembro de ter visto filmes que eu nunca tinha ouvido falar. Com 19 anos, eu via tudo. A minha formação foi entre os 15 anos de idade e os vinte e poucos, quando tirei o atraso vindo a São Paulo ou levando os filmes para Ourinhos, e depois, quando fui morar em São Paulo. Eu nunca quis trabalhar quarenta horas, nunca aumentei minha jornada, porque nesse tempo consumia cinema ou literatura. A minha infância, dos sete anos aos quinze, foi leitura: eu lia um livro por dia, li a biblioteca do colégio inteira. Só depois me liguei ao cinema.
FC – Dentro da literatura e do cinema, quem fazia a sua cabeça?
AO – Eu lia muito sobre questões filosóficas, de Isaac Deutscher a Octavio Paz, eu lia e ficava discutindo. Em São Paulo tinha muitos filmes japoneses, eu via muito cinema japonês, filmes do Mizoguchi, eu corria atrás. Também tinha muito cinema italiano, Bergman, Woody Allen…
FC – Em São Paulo e no Brasil, que pessoas você lia ou ouvia e faziam a sua cabeça, alimentavam esse amor pelo cinema?
AO – Era mais o convívio de faculdade. Eu convivia num meio que via muitos filmes, que discutia muito, sem preconceito nenhum, dos filmes brasileiros aos demais. Eu nunca fui ligado a grupos de discussão, a minha área de criação ia mais para o teatro do que para o cinema.
FC – Você contou que nasceu num ambiente de prestação de serviço para o lazer e diversão, e o cineclubismo é uma forma de transformar cultura em lazer ou lazer em cultura.
AO – Era uma satisfação própria, porque eu queria ver os filmes, e ao mesmo tempo uma articulação, eu lembro que no colégio tinha também o lado social de articular e de fazer as coisas. A vontade de fazer o cineclube era minha própria, e para os outros também, aí juntava os dois interesses. Não lembro agora quantos filmes eu passei na quadra do colégio, não era nem mesmo uma sala, era questão de arrumar o projetor e passar. O bom espectador, ele nunca vê sozinho o filme: ele quer carregar um punhado de gente para pensar com ele, para conversar. E isso na adolescência é fatal. Eu me surpreendo porque hoje, quando é muito mais fácil ter acesso a tudo, a gente tem menos organismos sociais. O que a gente tem mais é um individualismo do tipo “eu mando o link pra você pela internet”. Na época não tinha isso, a única forma de ver os filmes era pegar o 16mm, nem VHS tinha, então tinha que pegar o filme em 16mm. Arrumar um projetor, arrumar um filme, fazer isso tudo, e às vezes a gente fazia só porque queria ver o filme. Quando eu levei A noite dos desesperados eu levei, porque já tinha visto duas vezes e queria rever. Era como alguém com fome, querendo comer e precisando buscar comida. O que eu fiz foi uma migração cultural. Se eu tivesse como atender na minha região aqueles anseios juvenis de que eu tinha de ver alguma coisa específica, eu teria ficado lá, porque eu não era fascinado pela metrópole. São Paulo é uma cidade horrível de se viver, eu demorei pra me incorporar, vim pro Rio por não aceitar aquela cidade. Mas tem muita riqueza, que são os livros, os filmes, as peças de teatro. Essa é a questão.
FC- A Mostra de São Paulo é um grande evento que realimenta o interesse pelo cinema. Qual é a importância de uma mostra grande como ela para a manutenção desse espírito de cinefilia, de procura pelos filmes, pelo filme raro?
AO – A importância é grande, pelo sentido da renovação. O que é ruim no Brasil hoje é a substituição da sala de circuito pelo festival. Festival virou uma indústria, é uma substituição necessária porque tem cidade em que, se não for por um festival, o filme não chega. Mas isso é ruim. No caso de São Paulo, tem continuidade durante o ano. O duro é quando o resto do tempo é miséria, jejum cultural, que é o que acontece em muitas cidades. Eu não trabalho com evento e sim com a noção de permanência. Eu começo a pensar coisas de alcance nacional, porque esse é um dos elementos da diáspora que acontece no país.
FC – Você acha que a sala de cinema tem condições de enfrentar essa concorrência da individualização do consumo através da internet, do computador, do DVD?
AO – Eu não acredito no cinema, eu acredito no ser humano, no gregarismo dele. Isso tudo que você falou, eu acho que forçou as salas a serem melhores, como acontece com o próprio aparecimento do 3D. Daqui a pouco vai ter isso na TV, aí vão ter que inventar outra coisa, é um reposicionamento do espetáculo, mas o básico é o local de reunião, o ato de se reunir para assistir a um filme.
FC – Ainda hoje, acontece de você resolver estrear um filme no cinema simplesmente porque quer ver ele?
AO – Sim. Mas existe uma diferença entre programar um filme a cada quinze dias e o trabalho que a gente faz hoje. Hoje, mesmo que eu quisesse, é humanamente impossível acompanhar toda a programação. Mas na época, a gente não tinha o princípio de ir ver um filme porque sabe que é bom. Na época, era preciso pegar um filme pra ver entre os filmes que havia, quando se tinha um mínimo de informações, mais o desejo de ver algum filme. Na biografia do Buñuel, ele fala que entrava no cinema sem saber de nada e que todo filme ruim tem um minuto de genialidade. Aí eu penso que era isso o que eu fazia em São Paulo. Porque eu não tinha o hábito de ficar lendo critica para ir ao cinema, ia ver os lançamentos e descobria os filmes. A gente ia ao cinema, não ia ver um filme. Eu não tinha condutor, eu era intuitivo. Porque ninguém corrige quem aprendeu a ler em dez cartilhas. Nem nos partidos políticos eu era aceito, porque os trotskistas falavam que eu era maoísta e os maoístas falavam que eu era comunista. O Bixiga era num centro do PCB e eu era da Libelu[1], eu não tinha nada a ver com as atividades deles e ninguém me cobrava nada.
FC- E como é que fica hoje o prazer do cinema?
AO – Ele continua, porque pra mim o cinema entra pelos olhos. Para muita gente, ele entra pela cabeça. Quando entra pelos olhos, é igual a comida: você vai gostar ou não gostar. Se não gostar pelos olhos, não vai ter ninguém que vai te convencer a gostar. Os olhos estão ligados à alma como a boca está ligada ao estômago. Eu posso ler sobre um filme, mas, na hora de ver, ele tem que agradar. Uma coisa é fazer no cineclube, mas no mercado eu tenho que confiar na minha sensibilidade, para encontrar pessoas que sentir algo parecido. Um exemplo foi o Pão e tulipas, do Silvio Soldini. Essa história era um Esqueceram de mim adulto, não tem nada de mais, não é um filme que entra pela cabeça. Eu acho que os filmes “gostosos” de certa forma morrem com seu tempo.
FC – É que nem comida, tem que comer no dia?
AO – Sim, estão ligados ao tempo, mas o que permanece? Eu pensei nisso fazendo aquela lista que eu falei. Nós que nos amávamos tanto, do Ettore Scola, eu tinha adorado, revi anos depois e me decepcionei. Até hoje eu vejo Amarcord, os três O Poderoso chefão, Chinatown, do Polanski, Era uma vez na América, Império da paixão, do Nagisa Oshima. É minha forma de ver o cinema, que está muito associada à narrativa, a um modelo de narrativa. Por exemplo, eu adoro filmes com narração em off, tem gente que detesta. Eu não sou ligado a um cinema de contemplação. Um filme que foge disso é o Terra em Transe, que eu vi em São Paulo naquela época e depois eu fui rever. Se eu for escolher os meus favoritos, todos eles têm uma forma de contar enredos, encaram o cinema como um modo de contar histórias.
FC – E como exibidor, como você administra esse seu gosto pessoal?
AO – Nessa função, eu tive um momento na minha vida em que fiz uma mudança de rumo. Até 1998, quando teve a separação do Estação, eu tinha a Mostra do Banco Nacional, que era uma grande engenharia para promover os filmes que iam estrear em seguida. Eu abri mão disso, e entrei num período de reflexão sobre as questões de evento e de permanência. Pensando nessa questão do gosto, eu notei que tem uma distancia entre eu gostar e o povo chegar a perceber e ver o filme. De 1998 pra cá, os projetos que eu faço não são eventos, são permanentes. São o Curta Petrobras, o Folha Documenta, o Clube do Professor, o Clube Jovem, acontecem todo o dia, toda semana. Isso possibilitou fazer coisas que eram inviáveis economicamente. Por exemplo, a horizontalização da programação de documentários. Tem 30 mil pessoas no Brasil que gostam de ver documentário. Se o filme estrear de pé, com quatro horários por dia, ele vai ficar uma semana em cartaz e não vai chamar quase ninguém dessas 30 mil pessoas. Quando a gente deita ele na programação, deixando por mais tempo em cartaz, com menos sessões por dia, a gente traz elas. Minha mulher trabalha comigo, então a gente fala disso 24 horas por dia. Como a gente pode estender a exibição dos filmes pra esse país enorme, sem estar fisicamente lá. Isso faz parte do trabalho de cinefilia, que quer ampliar o número de espectadores. Aí nasceu o Clube do Professor, que começou em São Paulo. Hoje temos todo sábado, de Porto Alegre a Fortaleza, uma seção gratuita de um filme, com quase trinta e oito mil professores inscritos. É uma atividade que a gente realiza há dez anos, dando uma coisa para um formador de opinião sem pedir nada em troca – não existe uma troca do tipo “depois eles trazem os alunos”, não é uma questão comercial. Não importa qual é o filme, porque a preocupação não é fazer cabeça do professor. O amante de cinema tem que ver de A a Z. Eu nunca gostei de condutores, porque antes de gostar de Fulano ou de Beltrano, o cinéfilo tem que gostar de cinema. A gente viu que muitos professores não iam ao cinema, nem ao teatro, nem música, não iam ver nada. Então, os formadores das novas gerações são formados pela televisão, e por uma televisão ruim, que é a TV aberta.
FC – Ou seja, é uma formação de público qualificado. Tem a ver com o cineclubismo?
AO – O cineclubista lá atrás poderia ter a ilusão, mas hoje eu não tenho mais, de que “um dia a massa vai comer o biscoito fino que eu fabrico”. No mundo sempre vai ter alguns que conseguem saborear coisas diferentes e outros que nunca vão conseguir saborear, mas isso não importa. O documentário, o curta, o filme de ficção barato, em muitos lugares tem gente querendo ver, e às vezes não há apresentação. No jogo de xadrez de competição do mercado de exibição, eu tenho um cinema que tem raiz. O Clube do Professor é uma raiz, a apresentação de filmes que não cabem normalmente no circuito é uma raiz que diferencia. O cineclubista fazia isso, descobrir nos filmes valores que outras pessoas não viram. Na formação de platéia, esse é um elemento. E o outro é a luta contra a burrice. Porque tem uma produção enorme de filmes que não tem a escoamento nenhum. Ninguém me deu mandato pra ficar pensando qual é o escoamento do curta metragem ou qual o escoamento do documentário, mas é uma coisa que me intriga. Se os filmes existem e têm qualidade, tem que ter uma forma de escoamento.
FC – Você está dizendo que a programação convencional dos cinemas não leva em conta o fato de que cada filme tem seu público. É preciso então ter inteligência de programação?
AO – Isso é algo que se constrói historicamente, é preciso ter um conhecimento de cinema, de determinadas posturas dentro do cinema. Hoje, um programador de um conjunto técnico de salas não precisa saber disso, porque a bíblia dele é outra, é o box office dos EUA. A formação cineclubista me permite hoje olhar dentro de um balaio de peixes e saber o que é cada um. Eu encaminho uma parte do mercado que anda às cegas, sem saber o potencial dos filmes. Por exemplo, todo mundo programou o Tropa de elite no escuro. A gente tem que ter a percepção de saber até onde vão determinadas vontades do público, todo mundo pode errar ou acertar quando faz coisas no escuro. Por isso tem que ter essa sensibilidade, não é só conhecimento, você tem quer ter a percepção de saber o que está rodando. Tem filmes hoje para a garotada que a gente tem que saber o que é. Alguns você pode achar um lixo, e tem outros que são relativamente bons, mas são pra garotada, não é pro teu gosto de 50 anos de idade. Então, essa programação é uma ilha, em que ao mesmo tempo a gente carreia águas pra poder rodar, mas se não tomar cuidado a gente fica sem pé.
FC – Dá um exemplo de um acerto e de um erro seus.
AO – Não é o caso, eu ia falar de Sulacap. A gente botou três cópias do Tropa de elite 2 no complexo de Sulacap, enquanto teve complexos que colocaram só uma cópia. Mas aí é questão de feeling. Em termos de acerto, tem vários exemplos de filmes, como o Fuga das galinhas. Esse era um filme que estava em aberto, porque o mercado conhecia pouco a origem dos criadores. Aí eu peguei a copia legendada e coloquei no espaço Unibanco de São Paulo, porque não era um filme infantil, e depois foi uma briga pra pegarem as cópias de volta, porque deu 4.000 numa semana. O que eu sabia era que no Anima Mundi já tinham passado vários trabalhos deles, tinha um perfil, tinha um conteúdo.
FC – Onde você procura os filmes?
AO – Eu passei dezoito anos indo a Cannes. Essa relação me fez garimpar, recomprar os direitos de Um dia, um gato, achar um filme que eu corria atrás por ter visto numa cópia VHS pirata ruim, que era o I Clowns, do Fellini… O filme era de uma empresa chamada Leon Filmes, de Roma, e a gente mandou o dinheiro sem saber se aquela empresa existia, se a cópia ia vir ou não. O que a gente não perde é a vontade do novo, de ver coisas novas. Eu lembro que teve uma vez em que a gente perdeu, a gente tinha feito um pacote com Europa, do Lars Von Trier, Delicatessen, Pierrot Le Fou e mais um quarto filme com a distribuidora. Europa estava na competição de Cannes, era hipnótico ver o filme do Lars Von Trier, aí fomos lá numa reunião e o distribuidor falou que o Europa ia ter que sair do pacote porque o produtor tinha mudado de idéia e coisa e tal. Aí a gente falou que não levaria o pacote e desistimos. E o que aconteceu no Brasil? Delicatessen explodiu e Europa não fez sucesso.
FC – Ou seja, vocês acharam que Delicatessen não ia bombar e bombou
AO – Não que eu achava que não ia bombar , mas o foco era o Europa. Pergunta para o Hugo Sorrentino como o Tomates Verdes fritos veio parar na mão dele. Ele comprou outro filme e o Tomates verdes fritos veio junto. Aí o filme que ele comprou foi um fracasso, mas o Tomates verdes fritos foi um dos maiores sucessos do ano.
FC – Você lembra de algum filme que você achava que iria ser um fracasso e fez sucesso?
AO – Tiveram alguns sim. Mas eu não vou conseguir lembrar agora de um exemplo.
FC – Como é a sua visão do cinema brasileiro hoje? Com que tipo de filme você gosta de trabalhar?
AO – Não tem um gênero específico que eu gosto, o filme tem que me ganhar, seja documentário, seja ficção ou coisa parecida, tem que ganhar como história. Eu não sou adepto de cinema mais experimental. Mas não considero experimental o Santiago, por exemplo, que eu acho do caramba. É um filme interessante, assim como o Estamira, esses são dois filmes que eu boto juntos. Eu gosto daqueles filmes que conseguem conversar com grandes platéias, é bonito de ver o espetáculo da apresentação. Eu fui muitas vezes ao Pompéia pra ficar na sala escutando a gargalhada das pessoas depois de já ter visto o filme, como aconteceu com o Se eu fosse você. Agora, o próprio Tropa de Elite 2: uma coisa é ver o filme pra apreciar ele, outra coisa é fazer parte de determinadas platéias para ver a reação das pessoas com o filme – o que é um barato, é um espetáculo à parte. É horrível ver comédia em cabine, uma comédia precisa de uma platéia lotada.
FC – Até que ponto você considera que isso é uma extensão de sua cinefilia inicial, na medida em que todo cinéfilo tem essa vontade de contagiar as outras pessoas, fazer os outros verem aquele filme que você gosta? Hoje, sendo um cinéfilo que tem um instrumento para comunicar a sua cinefilia, você acha que você é um cinéfilo realizado?
AO – Não necessariamente. Pelo seguinte: nada é como você quer que seja. Pelo contrário, às vezes acontece o contrário daquilo que eu gostaria que fosse. O programador é um critico de cinema, mas ao mesmo tempo ele tem que seguir uma direção, não necessariamente uma direção artística, mas uma direção de comunicação.
FC – Como você caracterizaria os estilos de cinema e cineclubismo e as linhas de programação que te interessavam em cada década, desde os anos 1960, passando pelos 70 e pelos 80?
AO – Nos anos 60 eu era moleque e estava caçando passarinho no interior. Nos anos 70 eu era espectador voraz, até chegar ao Bixiga’, que tinha feito uma mostra completa do Bergman logo no primeiro ano, nos primeiros seis meses de inauguração. No Bixiga a gente tinha apresentado toda a Nouvelle Vague, a gente tinha redescoberto as cópias paradas. O cineclube da AGV tinha sido um dos meus formadores, na época de estudante eu ia muito lá, a projeção era maravilhosa, a carvão, com filmes como Faca na água, do Polanski. A gente pode tentar dividir em décadas, mas os meus degraus são assim: eu saí o Bixiga pra vir para o Estação. E, da sociedade civil sem fins lucrativos, a única coisa que mudou foi o tamanho da sala, de 120 lugares para 300 lugares. Já abrir o Paissandu foi uma questão de abrir como empresa, assim como ir a São Paulo para abrir um novo negócio. Voltar a São Paulo era um desafio e também foi um degrau acima, porque não era mais um apoio cultural, lá era o desafio de administrar a marca do Banco Nacional na fachada do cinema. O negócio foi perceber que estes cinemas corriam o grande risco de envelhecer junto com o seu público. Foi quando eu programei o Guerra nas estrelas no espaço Unibanco de São Paulo, e quase levei porrada, porque eu queria juntar o pai com o adolescente no mesmo cinema. Depois quebrei a cara lá em Juiz de Fora, onde eu quase fali, levando a programação do Espaço para o interior, quando eu não sabia que público ia ter. Eu queria botar a programação original, aí ninguém veio e quebrou, fechamos. A minha rainha em Juiz de Fora era a Xuxa, porque eu tinha que programar a Xuxa, o filme dela dava quatro mil pessoas por semana e eu tinha que exibir pra pagar as contas. Mesmo apresentado mostras, eu não tinha recursos suficiente na cidade para garantir as finanças de retorno dessas mostras. Então, foram vários aprendizados que confluíram para o Arteplex. Na verdade, olhando pra trás agora, existia um modelo que caminhava para o fim: essas salas isoladas que só apresentam filmes de arte. Elas tinham uma tendência a quebrar porque estava mudando o sistema, estava acabando o star system dos autores. Ainda nos anos 80, tinha um Fellini que chegava, um Truffaut, era como no “cinemão”, a cada hora apareciam filmes todo ano que garantiam a economia da sala. Hoje, qual é o star system de uma sala de arte? De quem é o filme que ela está esperando, que é uma garantia pra ela de sustentação econômica? Isso acabou. O dito cinema de arte vivia de um star system que minguou. Ele não acabou totalmente ainda porque a gente tem um Almodóvar, tem um ou outro a mais, mas ele era muito maior e minguou.
FC –Como você vê os cinéfilos de hoje?
AO – Eu acho que, a minha crença hoje é trabalhar sabores estéticos, mas não isolado, não compartimentado, porque o que acontece, se a gente for buscar informações intelectuais para isso, a única que eu encontrei foi a do Hobsbawn, no livro dele sobre “o breve século XX”. Ele faz uma leitura justamente deste período que nos estamos falando, com três eixos que ele aponta no livro. Um é o fim do eurocentrismo, porque a Europa deixa de ser a carimbadora do intelectual. Se a gente pega todos os movimentos cinematográficos mais fortes, eles tinham um ligação com a Europa. Agora a gente tem a globalização. A globalização provocou uma explosão de produção e o individualismo exacerbado, uma série de coisas que levam o indivíduo a se satisfazer num universo menor do que é o espaço gregário. Eu acho que, com esses elementos todos, mais a perda do star system, se eu não tivesse criado o conceito do Arteplex, a míngua seria líquida e certa.
FC – Como você resistiu às críticas que fizeram no início do modelo Arteplex, quando diziam que você tinha se rendido ao cinema comercial?
AO – Eu não encaro o cinema como igreja, podem falar o que quiserem. Eu tenho o maior orgulho de determinados projetos de permanência, de ter trazido o Imax para o Brasil, com aquela excelência de imagem. É um absurdo ninguém ter trazido antes, em 40 anos. Qualquer evolução que tiver na qualidade de imagem, eu vou ser um adepto. Assim como o digital, eu adoro ver os filmes em 35mm, preto e branco em projeção a carvão, mas ao mesmo tempo adoro a inovação tecnológica. Precisávamos de um cineclubista para trazer o Imax[2]. O espírito cineclubista tem algumas coisas que o espírito empresarial não tem. Uma certa ousadia na programação, mas também ousadia na feitura de uma coisa como trazer o Imax, que estava disponível no mercado há 40 anos. O Imax era um parque de diversões, mas ele evoluiu e, com o advento do digital, ele já estava na frente. O Imax começou com filmes documentais de pequena duração, e agora há filmes comerciais.
FC – Você acha que o país é conservador, é ruim de risco?
AO – Eu acho que no Brasil existem loucos, em todas as áreas, que ousam fazer, às vezes contra a corrente. Aqui a gente não tem quase nenhuma representação política, e no caso da exibição é pior ainda: é uma das áreas de representação sindical e política mais fracas. Só começou a ter representação há cerca dez anos. Não é à toa que a exibição saiu de 1500 salas para 900, sem o próprio meio gritar e espernear politicamente. Os mecanismos de financiamento que existem hoje, eles estão com um atraso de mais de vinte anos. Os exibidores se conformaram a ser apenas servidores da grande indústria de cinema, e só foram acordar politicamente quando descobriram que eles não são mais necessários, quando o próprio capital desse grande cinema vem pra cá e se instala, com a entrada dos multiplex. Porque antes era um berço eterno, continuava diminuindo o público pagante e aumentando o preço, diminuindo as salas e não atendendo à necessidade do país. Nós somos uma porcaria em termos de atendimento de salas de cinema no país.
FC- Você acha que a sala de cinema tem condições de enfrentar essa concorrência da individualização do consumo através da internet, do computador, do DVD, o que seja?
AO – Eu não acredito no cinema, eu acredito no ser humano. É o mesmo que aconteceu quando surgiu o VHS, que pôs as famílias para dentro de casa, assim como depois o DVD. Agora já não é a família ir pra dentro de casa, é o cara ir pra dentro da máquina, isolado. Eu não acredito nisso, por isso falei na crença no ser humano, no gregarismo dele. Isso forçou as salas a serem melhores, como aconteceu com o próprio aparecimento do 3D. E isso vai reposicionar os espetáculos, porque daqui a pouco vai ter 3D na TV, aí vão ter que inventar outra coisa. Acontecem esses reposicionamentos do espetáculo, mas o básico é o local de reunião. As poltronas, a tela e um bando de desconhecidos sentados juntos, olhando a mesma coisa, esse fator gregário permanece.
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