Quantcast
Viewing all articles
Browse latest Browse all 10

UMA BOA PROMISCUIDADE – versão integral da mesa redonda

  A equipe da Filme Cultura, acrescida do crítico Daniel Schenker, reuniu-se com três criadores altamente envolvidos com o diálogo entre o cinema brasileiro contemporâneo e o teatro. Christiane Jatahy experimenta essa junção em filme (A falta que nos move) e peça (Julia). Enrique Diaz, a par de seu trabalho em teatro, é ator de cinema e estreou no ano passado como diretor de vídeo. Pedro Asbeg documenta há mais de 10 anos as atividades do Grupo Armazém de Teatro e realizou recentemente o longa documental Mentiras sinceras. A seguir, uma transcrição da conversa.
Image may be NSFW.
Clik here to view.

Pedro Asbeg, Christiane Jatahy e Enrique Diaz

Carlos Alberto Mattos: Podíamos começar pedindo a vocês que, a partir do ponto de vista do seu próprio trabalho, digam como estão sentindo esse momento. Uma pergunta bem aberta. Enrique Diaz: Eu sempre me lembro do que o Aderbal [Freire Filho] falava. Ele lançava um olhar muito aberto no sentido de que tudo é dramaturgia, então a separação é muito relativa. Você tem diferenças de técnica, de ritmo, de estrutura, de produção, tudo isso. No fim das contas, a dramaturgia faz aquilo ser uma coisa só. Claro que tem essas questões de mercado, aí tem variações tanto dentro do setor do cinema como no setor do teatro. Mas acho interessante pensar nesse sentido, acho bastante libertador pra gente no sentido do trânsito. E me parece que hoje em dia a gente vive uma fase muito excitante, em função dessa facilitação de produção, muita gente fazendo coisas e tal. Isso propicia que esse discurso do Aderbal se torne ainda mais concreto, porque a gente tem uma possibilidade não de ficar sonhando com aquilo, mas pegar e fazer. Fazer o negócio e repensar com que dramaturgia você trabalha, se aquilo está circunscrito na maneira de fazer teatro, ou se ela pode ser mais ampla. E me parece muito interessante até o fato de ver cineastas querendo fazer teatro. Curiosos, interessados, vendo que é uma solução para a questão do ritmo de produção de cinema, você pode fazer várias peças com mais simplicidade e mais facilidade, o que é um ótimo exercício, dependendo do que você escolhe como estrutura do roteiro e tal. Sempre que eu vejo algum cineasta fazer esse movimento, eu fico meio “hum, vamos ver”. A imagem que a gente tem às vezes é de que na cabeça dele aquilo ali é a parte fácil. Enfim, é claro que o conhecimento deles é importantíssimo, mas o buraco é um pouco mais em baixo. Então é isso, eu vejo de uma maneira muito positiva esse trânsito. A relação de mercado é uma coisa no cinema muito forte, e no teatro não tanto. É claro que o cinema tem 200 mil modalidades. Claro que cada modalidade vai ter um tipo de repercussão no mercado, em termos de produção, em termos de quantidade de público. O cinema tem uma disponibilidade muito grande de formatos e ainda me sinto levemente oprimido por um cinema-cinema… Daniel Caetano: Caro, de grande porte? ED: Não só caro, mas o cinema da verossimilhança, o cinema clássico narrativo, que a princípio é o cinema que acontece com mais sucesso. Não que eu esteja preocupado com sucesso, que não é exatamente a minha trajetória. Mas assim, no sentido de “vou empreender alguma coisa”, sempre tem um fantasma de que tem um formato ali que poderia ser obrigatório. No teatro, não tanto, porque o teatro para mim ora poder ser um exercício, uma missão, uma pesquisa, ora pode ser pra buscar dinheiro. Eu me sinto mais à vontade. Christiane Jatahy: Tem uma coisa muito instigante nesse momento que é a possibilidade de você transitar, realmente, em várias áreas. Tem uma diluição das fronteiras, que acontece entre o cinema e o teatro, mas eu acho que acontece entre os vários meios, entre as várias artes. E existe uma abertura e uma curiosidade, e uma boa promiscuidade que eu acho interessante e me instiga. Eu fui muito abusada de fazer um longa [A falta que nos move]. Quando eu pensei em transformar uma peça num longa-metragem, que eu nem sabia exatamente se ia ser um longa-metragem, o que me interessava era trabalhar com o meio de cinema. A minha questão principal tinha muito a ver com a dramaturgia e com o que aquele trabalho alcançava, porque pra mim o teatro é um triângulo que acontece entre os atores e o público. E o que mais me interessava naquele momento era como eu conseguiria provocar no espectador de cinema uma impressão, uma sensação semelhante à que o espectador de teatro tinha com aquela peça. E eu sabia que aquilo me obrigava a quebrar uma série de parâmetros e fugia ao que poderia se chamar o cinema dentro da sua estrutura, ainda que a gente saiba que tem milhões de olhares e possibilidades no cinema. Mas eu não estava muito preocupada em corresponder a uma certa tradição. Eu estava mais interessada em levar uma pesquisa para um outro meio. E foi muito curioso isso porque ela é um exercício e ao mesmo tempo se transformou num resultado, e eu acho que ela coroa, de uma certa maneira, a peça, porque a leva a um lugar que de fato ela não poderia ir. Agora eu estou fazendo outra peça, em que eu tomo o caminho inverso. Eu digo que em A falta que nos move eu levei o teatro para o cinema, e agora no Julia eu estou levando o cinema para o teatro. Porque é um filme feito ao vivo, mas ao mesmo tempo é no teatro. Se é no teatro, então é teatro, não é cinema. Mas ao mesmo tempo é projetado e é pensado realmente nos dois olhares. O tempo todo, tanto na interpretação dos atores, como para mim, na mise en scène, a questão era como eu conseguia que isso fosse visto desde o olhar da câmera, e a gente trabalhou plano a plano, ao contrário de A falta, que era um exercício do improviso. O Julia é pensado, eu fiz até storyboard, quis fazer o caminho inverso. Mas ao mesmo tempo isso está sendo visto, então tem um outro ponto de vista que tem que ser valorizado. Enfim, para mim é uma pesquisa, é uma curiosidade, um desejo de continuar meio abusada e experimentando essas possibilidades, que eu acho que renovam a comunicação com o público. Pedro Asbeg: Apesar de eu também me sentir parte desse encontro cinema-teatro, o meu ponto de vista é um pouco mais distante pelo fato de eu trabalhar mais com documentário. Então, o próprio filme que eu fiz [Mentiras sinceras], em que eu tentava entender um pouco mais do universo do teatro, do processo de montagem da peça Mente mentira, foi a partir do documentário, um olhar mais distante, não tão próximo da dramaturgia, que é um universo que eu certamente não domino. Mas pelo fato de trabalhar com o Paulo de Moraes nos DVD da Companhia Armazém, desde 2000 ou 2001 – com Da arte de subir em telhados, e já no quinto DVD feito ano passado – ao longo desse processo o meu interesse pelo processo do teatro, desde as leituras, os ensaios, os exercícios até a peça pronta, me instigou e fiquei muito a fim de trabalhar com esse tema. Nos últimos dois anos, pelo menos, eu tenho visto ou sabido a respeito de muitos documentários que tratam desse universo. Então, fico feliz de saber que as conversas vão se encontrando. Daniel Caetano: O que eu acho interessante de pensar é a questão da espontaneidade, da improvisação, que está muito presente no trabalho de vocês, no teatro contemporâneo. Frequentemente, um dos trabalhos do diretor de teatro é desarmar aquilo que parece estar armado demais e fazer com que tenha essa relação imediata com o público. E no cinema, mesmo que a gente capte a improvisação, ela vai ser trabalhada pela montagem e vai ser recebida de uma outra maneira. Inclusive, a própria participação do Enrique no Moscou como personagem tem um pouco isso: a gente está vendo aquilo lá, de qualquer maneira, filtrado, escolhido, reencenado, repensado. ED: Ele é repensado pela montagem, mas a possibilidade de uma coisa acontecer sem querer e ficar, no teatro não existe. Pode acontecer num dia, e no outro ou já incorporou ou não acontece mais. Então tem uma coisa louca no cinema: o acaso pode ser muito determinante. Você ficar relaxado no set é superimportante. No teatro você está relaxado, mas a partitura te ajuda muito porque você tem que construir o espetáculo inteiro. Não faz um pedacinho várias vezes e o melhor você pega e fica com ele. Você tem que saber o que vai respirar até o final. DC: Eu queria propor essa questão em torno do improviso e da coisa do momento para pensar como se pode trabalhar essa questão das linguagens. Tem uma coisa que eu acho interessante no Julia, que é a possibilidade de durante a filmagem a ação dramática ser interrompida. E era para ser interrompida… Ainda dando um outro exemplo, o Cassavetes. No Noite de estreia tem aquele momento em que a Gena Rowlands pira, e aí o Cassavetes como ator está no palco e tem que responder àquilo. Quer dizer, de uma certa maneira, ele conseguiu encenar o que é a situação do improviso no momento. CJ: O interessante, sobre isso de estar ensaiado ou não, é o que parece improviso para o espectador. CAM: O acaso! Não é toda vez que uma atriz fere a cabeça no meio de uma peça, hein? [referência a um acidente ocorrido durante a filmagem de A falta que nos move] CJ: Nem em um filme, não é? (risos) Enfim, esse é o ponto mesmo quando eu tentei filmar A falta que no move. Era a proposta de fazer uma filmagem contínua, sem um segundo take, mas ao mesmo tempo precisando de um roteiro. Porque é superimportante saber que aquilo ali é muito roteirizado. Então, existe uma dramaturgia para ser seguida, embora o momento seja espontâneo. Mas a história precisa ser contada porque depois eu preciso montar isso, não como um documentário, mas como uma ficção que é filmada como documentário. A trajetória dos personagens é predefinida, mas está aberta para acidentes como esse, e os acidentes entram no filme. A gente falava muito sobre isso: o acaso não é erro quando é assumido como parte da coisa. Isso cria uma zona movediça, a sensação de que a coisa não está exatamente sob controle. É a questão do documentário novamente, da ideia da vida. Ou seja, de que não tem controle. ED: Tem o jogo do acaso, da espontaneidade, e tem o artifício. Tem a estrutura. Por exemplo, um bom ator de cinema muitas vezes tem a noção de timing, de câmera, de ângulo, de respiração, que é um treino que não tem a ver só com o acaso. Ele tem a ver com uma cultura, com o que ele observou e tal, o que funciona melhor. Eu estou ensaiando uma peça agora que quanto mais marcado mais eu acho legal. Chama-se A primeira vista, com a Mariana Lima e a Drica Moraes. São duas atrizes muito fortes, e a gente tem um embate ali. Eu sei que quanto mais amarrar, melhor vai ser. Não no sentido de diminuir o espaço delas, e sim de que essa amarração vai ajudá-las a poder variar. Mas se a gente mitifica o acaso ou só o improviso, a gente esquece que tem uma maestria possível de partitura, que é sensacional. E aí eu volto para as peças que eu fiz, que são mais coletivonas. Viajando para a Europa, alguém me falou: “Mas é tão improvisado!”. Não, não é nem um pouco improvisado, mas foi muito improvisado para fazer a ponto de qualquer coisa que aconteça de diferente eles vão improvisar mesmo. Eles não precisam improvisar, mas eles vão saber improvisar porque nasceu de improviso e foi sendo costurado, em termos de estrutura, ainda no espaço do improviso. Vou só dar um exemplo bobo, mas que eu gosto muito: A gaivota. A gente ensaiou quatro meses, fez uma temporada de três meses aqui no Rio, sempre mudando alguma coisinha. O Gilberto Gawronski, que fazia a peça como ator, chegava em cima da hora, nem ensaiava e mudava. Passados esses três meses, a gente começou a ter viagens internacionais. Temos que mudar um pouco mais radicalmente. Re-improvisamos uma peça que estava em cartaz durante três meses. Numa primeira semana radicalmente, na segunda semana já um pouco menos. A gente tinha que traduzir o texto de novo. A gente não podia improvisar um flemish [idioma flamengo]. Então tinha que ter um texto a tempo de traduzir para mandar. Então a gente improvisou radicalmente, entendeu quais mudanças eram necessárias, reimprovisou com menos âmbito e depois fixou o texto. Mas era uma parceria do coletivo que veio da improvisação. Todo mundo sabe que se colocar numa improvisação não quer dizer ficar num mar aberto para sempre. Então a partitura funciona nesse sentido. A gente sabe que vai ter uma hora em que aquilo ali vai segurar. Image may be NSFW.
Clik here to view.
Daniel Schenker: Eu acho que não tem como fugir da construção. A questão é, talvez, o quanto interessa que essa construção apareça para o espectador. Nesse sentido, A falta que nos move trabalha muito nessa tensão porque, por um lado, existe todo um apagamento. Então os atores usam os próprios nomes, é um registro de atuação que caminha na contramão da representação, quer dizer, no apagamento da construção. Por outro lado, há um aviso de que existe construção quando se informa que eles estão seguindo um roteiro. Quer dizer, tem essa tensão entre o aparecer e o não aparecer a construção. CJ: Eu gosto muito daquela frase do Nietzsche, que é “dançar com algemas”. Eu realmente acredito que só é possível ter liberdade para criar no momento se você tiver muitos limites, muitos suportes. CAM: Isso também está valendo para o cinema atualmente. O cinema de processo. Está muito em questão essa coisa de evidenciar ou esconder o processo de construção. Vocês acabam vivenciando isso nas duas frentes. No caso do Enrique, é o seu próprio corpo que faz a interface do cinema e do teatro. Você atua no cinema, eventualmente. Você fez um vídeo agora, Deus no arroz doce, que é o seu primeiro trabalho de direção de audiovisual. ED: Eu fiz também um clipe, mas não tem uma coisa de autoria. CAM: Pois é. Deus no arroz doce seria mais um movimento seu no sentido do cinema ou é uma simples extensão do seu trabalho em teatro, já que ele também tem uma coisa bem teatral na maneira como acontece diante da câmera. E mais uma vez é o corpo como elemento fundamental, porque tem filmes projetados nas paredes da casa e até em cima do corpo das pessoas. ED: O vídeo é sim um movimento, um desejo em relação a esse trânsito para outra mídia. Ele foi encomendado [pelo evento Atos de fala], só que com total liberdade e sem nenhuma pretensão. O Felipe Ribeiro, que era um dos curadores, fez o vídeo do meu último trabalho do Coletivo Improviso. A gente sempre falava “vamos fazer umas coisas e tal”. O vídeo surgiu assim, do improviso, da coisa de buscar em si próprio, na família, sem saber a forma que aquilo teria. Era o bloco do eu sozinho. Eu ia para a casa da minha mãe carregando um tripé, uma câmera, um microfone. Meu pai morava fora, aí ele chegava, eu gravava. Pegava minhas filhas, vamos botar um monte de fantasia aqui. Projetor, computador, câmera, tripé. Então o filme apareceu nesse processo de ficar à disposição dele, que é a coisa do documentário. Ele foi surgir de fato na montagem, foi virando uma coisa, como toda montagem, incompleta. Porque se desse para continuar, ficaria montando eternamente. A impressão que eu tive é de que ele me deu um certo espaço, meio entre artes visuais, cinema, teatro e tal, que foi exatamente o exercício de não precisar pertencer a um lugar X, muito a priori, muito certinho. É meio errado também, mas ao existir ele me fala que tem coisa aí. Tem coisa que eu posso procurar. Aí voltando para a coisa do corpo que você falou, eu acho muito perspicaz da sua parte, porque, como sou ator e trabalhei muito com essa coisa de improvisação, tem um aspecto da performance art que é você estar ali, que é o oposto do planejamento de produto. Eu acabei atuando em várias peças e shows que dirigi. Às vezes no show da Marina ou no Ana Carolina, eu entrava com a câmera na mão. Tinha alguma coisa sobre “Estou vivo agora, faço isso aqui e não possuo isso aqui como objeto”. Eu sou o meu trabalho também, eu estou ali. Não que eu seja nenhum especialista nessa coisa da performance art, mas tinha uma sensação de aventura, que tem a ver com estar ali. Tanto que o trabalho do Coletivo que eu codirigi, esse último, eu estava em cena, feliz da vida, e tinha um canal oposto ao da direção tradicional, que é “eu controlo e eu desenho”. Tinha uma coisa de “a gente está aqui junto, e junto com o público, e é esse entendimento entre a gente que cria um organismo sólido, não tanto a capacidade de tratar aquilo como um objeto que eu como desenhador vou fazer ficar melhor”. Então isso tem uma importância grande, eu acho. No caso do vídeo, tem essa coisa do recurso também. O recurso que a gente usa, a sensação de ter imagem… Na hora em que você joga uma imagem em cima da outra, você está fazendo o mesmo procedimento da montagem, mas com uma cara inverossímil, ela é artifício mesmo. Você não está fingindo que aquela montagem segue um raccord autoral ou mesmo poético, mas que engana. Não, aquilo claramente não é a vida acontecendo, tem alguém projetando alguma coisa ali em cima. Isso me dá uma sensação mais forte de rasgar a realidade. Por exemplo, a imagem dos meus pais com os fogos de artifício é uma imagem celebrativa mesmo e falsa. Ela é como se fosse um quadro, não é uma fotografia, é um quadro. CAM: E são filmes e fotos da família, não é? ED: Todos os filmes Super 8 são da família. Alguns têm 50 anos de idade. E tem as imagens que eu fiz no Parque Lage, inclusive aqueles fogos de artifício são do Desassossego [filme coletivo coordenado por Felipe Bragança e Marina Meliande], que eu gravei da televisão. Mas não é uma coisa proposital de ser chique e fazer citação, era porque eu gostei mesmo. Fogos de artifício são todos iguais, ninguém vai reclamar dos direitos. CAM: Os projetos que promovem esse encontro entre teatro e cinema acabam descambando para o terreno da subjetividade, da coisa pessoal, de família. Eu penso no Moscou, no Mentiras sinceras, que começam já com atores conversando sobre assuntos de família e ecos que eles trazem de pessoas reais para o trabalho. No A falta que nos move a gente nunca sabe até que ponto é a personalidade daqueles atores que está sendo ali trabalhada, assim como as histórias reais de família e parentes. DC: O filme constrói um mistério em torno do personagem que parece aludir muito fortemente à realidade. CJ: No caso do A falta, esse é um projeto que começa em 2004, então naquele momento isso estava me interessando por causa da ideia de fronteira: isso é um artifício, isso é falso, isso é verdadeiro, é ator, é personagem? É o nome deles ou não é, são histórias deles ou não? Não que não me interesse agora, mas naquele momento isso era uma questão para mim. Quando você chama uma pessoa pelo próprio nome em cena, mesmo que não tenha nada a ver com a história dela, que tudo seja uma invenção, provoca uma reação que é perceptível como verdadeira. Eu saí de uma pós-graduação em Filosofia, logo a questão da verdade me interessa muito. Se você pode apreender de alguma maneira a verdade, ou se ela sempre está escapando, enfim. Isso era um movimento, mas acho que não era só meu. Falo de 2004, 2005, quando havia todo um movimento, uma pergunta sobre si mesmo para tentar entender o outro, o que está fora de você. A partir daí você cria a possibilidade de dialogar com o Outro. Então, A falta, como conceito, parte muito dessas premissas e por isso ela é tão misturada. Claro que ela chega ao cinema em 2011 já com esse percurso e esse contágio. Quando eu fui montar agora o Julia foi muito engraçado porque, por acaso, a atriz também se chama Júlia. E é óbvio que eu uso isso em cena. ED: Eu não vejo tanto isso vir no encontro teatro-cinema. Isso já é uma tradição do teatro contemporâneo. Há muito tempo, e eu diria que vem de Pina Bausch, Jérôme Bel, a dança contemporânea. Hoje em dia, isso é clichê, o que não é um problema porque clichês são úteis. Mas o teatro contemporâneo nos últimos 10 anos, especialmente no Brasil, é feito de listas, é feito de “eu sou essa mania, essa medida, o que eu fiz ontem de manhã, o meu dente que está cariado… Eu digo Pina Bausch porque me parece que, além de ser a pessoa mais importante do século XX, ela fez isso genialmente. Era um exercício que os bailarinos criavam com referências pessoais, seja gestuais, seja verbais, seja biográficas. E isso foi se disseminando. É uma das maneiras, que eu associaria também à literatura, de fugir da preponderância da trama. “Eu sou o meu pé andando, eu sou a foto que eu vejo, eu sou a carta do meu pai que se matou, eu sou aquele objeto que eu tenho guardado, eu sou a minha identidade”. É também uma maneira de fugir de um teatro realista, que só pressupõe a verossimilhança de uma ação à qual a gente se relaciona como voyeur. Não. É o épico: eu falo com a câmera, falo com o público. Luiz Antônio-Gabriela, uma peça do Nelson Baskerville, é um teatro-documentário, megacabaré, megateatral, cheio de documentos, de informações concretas, de narrações de coisas concretas que aconteceram. Isso é uma coisa que está acontecendo há muito tempo. Mas também se aproxima do documentário, dentro do teatro. Então já começa a ter essa percepção. Luís Alberto Rocha Melo: Essa subjetividade acaba sendo representada pelo espaço também. São filmes que trabalham espaços confinados. Eu fico pensando na relação entre cinema e teatro nos anos 1970, que tinha muito a ver com a coisa de ir pra rua, o teatro de rua, um enfrentamento com o exterior. CAM: Em A falta, alguém chega a falar que aquele apartamento não pertencia à realidade. PA: No Mentiras sinceras, eu me aproveitei do fato de a peça tratar já desse tema, das realidades que cada um cria, e como aquilo aos poucos vai fazendo com que um grupo de pessoas tenha visões diferentes sobre a mesma coisa. Documentário, o nome já diz, é algo que a gente imediatamente entende como coisa real. Eu queria fazer uma brincadeira, um documentário em que nem tudo fosse verdadeiro. Acho que, mais uma vez, é a ideia das conversas se encontrando. Mesmo não sendo um filme de ficção que usasse os atores para encenar textos, ainda assim construir um filme que também deixasse no ar a dúvida para o espectador: aquilo ali é real? O que aquilo quer dizer mesmo? Será que aquela pessoa passou por aquilo que está sendo dito? Aquilo foi o ator ou foi o personagem? Por conta da brincadeira, do que é possível ou não no teatro. DS: O Mentiras sinceras me lembrou o Jogo de cena, porque vai falar dos mecanismos de apropriação de uma experiência que não é a sua. E esse “embolamento” entre a primeira pessoa do ator e o texto que ele vai falar, que não reflete as experiências dele. Como ele se apropria disso e faz com que isso seja dele, a ponto de, no caso de Jogo de cena, o espectador não saber mais quem é o dono da história e quem está interpretando a história. Você chega num determinado nível em que apaga completamente os sinais de representação. E são mentiras sinceras por causa disso, mentira naquele sentido mais evidente de que você está falando alguma coisa que não te diz respeito diretamente, mas o mecanismo de apropriação pode fazer com que seja verdadeiro. CJ: Tem um dado sobre a questão da dramaturgia que para mim é fundamental. Voltando ao A falta, são histórias pessoais, tem o nome deles e tal, mas o que está realmente acontecendo é ficcional. Inclusive a peça tinha o subtítulo Ou todas as histórias são ficção, porque as relações entre eles constrói uma teia completamente ficcional. Portanto, é uma utilização dessas ferramentas do aqui e agora, mas o que de fato acontece entre eles é completamente criado a partir de processos de improviso. Isso é completamente do teatro contemporâneo, que são os processos colaborativos. Você aproxima tanto porque você é parte daquele processo criativo. Você é indissociável daquilo que está fazendo, até mesmo para além de falar o seu próprio nome ou de dizer algo que se parece com a sua história. Não se trata de uma dramaturgia de gabinete, em que você se senta e o texto vem pronto. DC: Desenvolvendo isso aí, eu pensei numa coincidência interessante, que talvez faça parte desse processo. De certa maneira, o trabalho de vocês lida muito com uma leitura crítica de cânones. Christiane montando o Julia, do [August] Strindberg agora, revendo isso no século XXI (…) O Ensaio, Hamlet do Enrique, A gaivota, enfim… Essa maneira de lidar com o ator, de incorporar o ator, de fazer com que ele traga sua vivência, exponha não só o corpo mas toda uma trajetória. A gente pode ligar isso também a tentar rever o que é uma dramaturgia, tentar pensar novas formas de construção de dramaturgia. ED: Faz todo sentido. Concordo. Ainda mais em relação ao clássico. Olhar para o clássico significa perguntar por que ele é clássico, se é que ele realmente merece aquilo. Se ainda está vivo. E é via dupla, se ele ainda está vivo e, por outro lado, a gente é herdeiro de direito, porque isso é um patrimônio da humanidade. Então ele é nosso, e a gente não tem uma dívida com ele. Se ele é nosso, eu posso me procurar dentro dele, e esse exercício é que faz a peça ser criada e não ser simplesmente reverenciada. Ser criada no sentido do espetáculo. A gente renovar o olhar e experimentar aquilo hoje. Pode ser que algumas coisas não fiquem para hoje. Não que seja uma comprovação indiscutível, mas pode ser que algumas coisas não fiquem. É um exercício permanente. Mas eu concordo e acho inclusive a ideia de storytelling, de rever que histórias a gente conta e como a gente conta é uma ideia de atualização. Isso é muito instigante porque nos obriga a discutir a própria historiografia. Não de uma maneira acadêmica, mas no sentido de “isso me é dado, mas isso está aqui hoje?”. É que nem livro de História. “Quem escreveu essa história? A elite… Essa história é real ou tem que ser reescrita?” Então você pode dizer que isso sempre foi assim. Parar pra olhar, não era. Foi escrito por causas, condições históricas. Por isso a questão de quebrar em pedaços, de desconstruir, em vez de simplesmente aceitar. Você desconstrói, legal, então passa a gostar dela se confirmar que aquilo é daquele jeito mesmo. Ou então não, desconstruir pedacinhos, montar de outro jeito; e pode ser mais legal de outro jeito. Acho isso uma ação concreta. CJ: Uma palavra que ele usou que é interessante é o “como”. Na hora é indissociável a ideia da forma e do conteúdo. Então quando você muda a forma de olhar aquilo, algumas vezes desconstruindo totalmente e reconstruindo, outras vezes mudando, reformulando, adaptando, ou até mesmo trazendo uma outra possibilidade de ser visto, de alguma maneira aquilo cria uma renovação enorme sobre a obra e a atualiza. E aí você vai diretamente no porquê então, porque você vai falar aquela história assim. No meu caso, pela proximidade que eu tenho com o trabalho do Enrique, também o como você olha para aquilo muda completamente a história que você está contando. E aí eu já nem lembro mais que é um clássico. CAM: O Enrique falou de evolução histórica. Eu fico pensando: o chamado teatro filmado sempre foi uma expressão apavorante. Afastava as pessoas. Houve uma luta dentro do cinema para se estabelecer como arte própria, fugindo principalmente do teatro. Mas hoje parece que perdemos o pudor de trazer o teatro para o cinema como teatro. Vocês localizam algum momento, alguma expressão, algum personagem, algum autor, algum elemento que tenha sido decisivo na mudança do que a gente está vendo hoje? ED: Eu continuo achando aterrorizante. Esse foi um dos debates que eu tinha com o Coutinho e com o Neco [o assistente Ernesto Piccolo] lá no Moscou. A questão de se a peça vai ser virada para lá ou para cá, quantas pessoas tem, não podia existir. Primeiro porque no que eu faria normalmente em termos de buscar alguma verdade naquela discussão, de mexer na massa, não interessaria, e segundo porque esse filme só ia ser visto como filme. Se eu pensasse em um teatro de 500 lugares, já estaria fazendo um filme ruim, de cara. E já estaria dizendo que ator de teatro é ruim. A brincadeira, então, era “vamos fazer um filme”. Ficava naquele nível de jogo, de relação da pessoa com a arquitetura, que é um trabalho que eu faço normalmente no teatro. Se é um lugar fechado, se é aberto, se é amplo, se não é, isso são sugestões pra gente. Agora, a ideia mesmo, mais prototípica, do teatro filmado, eu acho terrível, porque várias gerações seguidas já têm uma formação imagética de cinema e televisão. Então, se você não está no teatro e você vê aquilo filmado… a não ser que seja um cinema farsesco. DC: O cinema faz isso. Você pensa num Dogville, aquilo está assumido como um teatro imaginário. ED: Mas a atuação é inteiramente cinematográfica, ele [Lars Von Trier] não faz uma atuação denominada teatral. É para a câmera, sabe que tem close, só não tem as paredes. É um estilo de encenação, não tem a ver com a imagem do teatro filmado. Hoje em dia isso complica porque você faz peça para um espectador, por exemplo. Aí é close mesmo, tudo bem, pode ser um teatro filmado legal. Mas voltando à sua pergunta, eu não vejo uma mudança no olhar sobre o que a gente pode chamar de teatro filmado. Eu vejo essas águas começando a se misturar mais. Quando eu fiz a Melodrama, por exemplo, uma peça específica sobre esse gênero, eu sempre falava “melodrama não pode querer dizer teatral no sentido ruim”. O melodrama tem uma verdade que pode ser teatral, mas é verdadeira. A brincadeira é essa. E eu brincava com rádio, televisão, tudo na mesma peça. Porque essas gerações estão todas formadas, então se você faz o teatral, você faz um teatro com verdade em termos de dramaturgia, de eixo, etc. Faz aquilo funcionar, mas tem uma cara de teatro. E faz um cinema supersutil ali, também verdadeiro. Pra você ver que é a mesma coisa. E não “o teatral é o ruim”, que isso é uma imagem antiga, uma imagem de papelão. Image may be NSFW.
Clik here to view.
CAM: Eu acho que o pensamento documental entra nesse meio para embaralhar as coisas. Quando você filma A falta, você pensa aquilo de alguma maneira como um documentário dessa ação teatral? CJ: Engraçado que tudo parece muito espontâneo, mas foram quatro meses de ensaio para tentar fazer com que deixasse de ser teatro. Mas ao mesmo tempo trazendo a história que era teatro. Por isso quando você faz essa pergunta, eu me lembrei de Cassavetes, eu me lembrei de Bergman, fui me lembrando de pessoas que de fato não faziam teatro filmado, mas você vê que tinha uma coisa do teatro ali. Mas, então, a gente tinha a peça, e a gente falou: “Vamos fazer a peça para filmar. Mas vamos fazer na casa”. Então já não estava fazendo teatro porque mudaria completamente a ideia. ED: E ficou horrível? CJ: Horrível, horrível. Eu falei “Não vai dar certo”. E aí foi quando a gente começou a fazer todo o trabalho de novos procedimentos, de uma nova dramaturgia, de uma nova reconstrução que só era possível porque tinha quatro anos de trabalho entre aquele grupo de atores, que são os mesmos que fizeram a peça, mas que mudava completamente a relação que eles tinham, tanto uns com os outros como com a plateia. No teatro a plateia era presente o tempo todo. E por mais que a presença da câmera fosse constante, não era a mesma coisa. A câmera está “aqui” nos atores o tempo todo e, portanto, eles estão conscientes da câmera, eles estão fazendo cinema para a câmera sem estar com a câmera. Portanto, é documentário, mas ao mesmo tempo são atores atuando. Mas é filmado de uma maneira documental porque o making of de certa maneira está presente de alguma maneira ali. Como são atores fazendo, tudo o que diz respeito à ideia da cena está aparente, a gente não para de filmar, não faz o corte. CAM: É o ator que dirige a câmera, não o contrário. CJ: Mais ou menos. Os câmeras tinham ponto, a gente tinha video link, e a gente ficava falando, eu e o Waltinho Carvalho. É claro que são 13 horas de filmagem e milhões de situações. A coisa acontecia na surpresa e eles iam seguindo, mas tinha todo um planejamento de desenho de onde estava cada câmera para que eles não se pegassem o tempo todo. DS: Tem a construção de uma espontaneidade, não é? Sob o ponto de vista do ator. Normalmente quando a gente fala de espontaneidade, seria alguma coisa que acontece sem que a gente planeje. Mas em arte, a espontaneidade é alguma coisa construída, que às vezes dá ao espectador a sensação de que não tem nada lá, de que a coisa está se dando de repente, do nada. Mas na verdade foi uma construção devidamente encoberta, que não aparece. PA: Esse é um assunto com o qual eu também venho trabalhando já há algum tempo. Nunca se vai captar em vídeo a força que existe no teatro. Impossível. Mas eu acho que tem algumas coisas aí. Primeiro, o que a gente entende por teatro filmado. No caso dos DVD do Armazém, era uma ideia de ter um registro daquele trabalho. Eu, que venho do cinema, fico sempre agoniado em pensar a quantidade de peças incríveis que são feitas e que ninguém pode ver mais. Se você quiser ver um filme que foi feito há 80 anos atrás, com relativa facilidade você consegue. E uma peça que foi feita no ano passado e que saiu de cartaz, acabou. Então esse foi um primeiro ponto: começar a ter um registro do trabalho da companhia. Em segundo lugar, embora as questões técnicas e tecnológicas, a maneira de se filmar terem mudado nesses pouco mais de 10 anos entre o primeiro e o quinto trabalhos – já no quarto a gente começou a usar carrinho, no mais recente a gente tinha uma grua dentro do teatro –, o ponto inicial para mim e o Paulo de Moraes foi considerar o ponto de vista do espectador da televisão. Então acho que isso faz diferença porque a gente entende teatro filmado como uma câmera chapadona lá no fundo, que obviamente não é interessante nem para quem fez o trabalho e nem para quem está assistindo. Nós tínhamos sempre uma câmera em plano médio, e o resto eram planos fechados. A gente tenta sempre trabalhar o mais fechado possível e ter um ritmo de corte legal para que não fique uma coisa óbvia. Não tem que ficar cortando desnecessariamente se a cena está bonita, o ator está bem ali, mas de uma forma geral a ideia é essa. Pensar o espetáculo não do ponto de vista do espectador do teatro, que está sentado vendo aquilo ali naquele espaço, mas de quem vai ver numa tela como a da TV. Nunca vai ser igual, e ao mesmo tempo acredito que aos poucos possa existir uma coisa que por um lado seja um documento, um registro, e ao mesmo tempo seja um pouco mais interessante de se ver. ED: Acho a ideia do registro essencial, superimportante. Mas eu acho crucial o limite, a diferença. O tipo de qualidade de que o Pedro está falando, eu entendo e concordo. Mas eu acho que uma coisa realmente diferente é você ver um produto, um DVD da peça. Você está vendo uma peça, você sabe que aquilo é uma peça. Não está vendo alguma coisa audiovisual. Aquilo só serve como referente. Se aquilo é um filme, eu duvido que seja bom. Jogo de futebol, eu até prefiro ver na televisão, por exemplo. Eu vou no estádio, não tem replay. A cultura já é essa, eu acho melhor, não faço questão de estar lá. No jogo de futebol, a gente sabe que eles estão jogando, não estão de mentirinha. No teatro, está armado. O fato de estar armado e a gente ver uma linguagem de atuação, por exemplo, que é feita para aquilo ali, já faz aquilo pertencer àquele mundo. Aí funciona como registro excelentemente. Mas não é a mesma coisa… Faço gravações de vídeo das minhas peças às vezes, fico amarradão. E fica ótimo, mas é como referência para mostrar a peça, e não como coisa autônoma. Tenho várias coisas gravadas, algumas que nunca foram editadas. PA: Mas o lance de virar DVD eu acho legal. O Paulo, por exemplo, volta e meia me repassa uns e-mails de alunos de escolas de teatro do Brasil inteiro, ou de outras pessoas falando que nunca poderiam ter visto o espetáculo se não fosse aquele registro. DS: Tem a questão do tempo aí. Porque o teatro é a manifestação do presente e o cinema, do passado. Alguma coisa foi gravada num determinado momento e é reexibida para o espectador algumas vezes por dia. E num certo sentido é morto, porque um filme só muda de uma sessão pra outra se der um problema no projetor. Se não, é exatamente igual. Nessa interface teatro-cinema tem um certo choque de tempos entre o presente do teatro e o passado do cinema. ED: Eu não pensaria tanto em presente e passado, mas em ato de comunicação. A gente é muito subjetivo, recheado de milhares de coisas, e tem esse mundo aqui que é um pouco ameaçador às vezes, que é estar em comunicação com o outro. Tanto que as pessoas têm medo de ir ao teatro. Quem faz cinema não gosta de teatro. Porque tem o constrangimento de ver o amigo ali, tem que falar depois. É um ato de comunicação, onde essa interface entre uma pessoa e outra está em questão. No cinema, é claro que é um ato comunicativo, mas na hora em que eu vou ao cinema aquele filme é meu. Não tem ninguém me olhando, aquilo é meu, é um livro que eu leio, que também é um ato de comunicação. Mas a pessoa não está ali, então o foco é muito mais imaginário. Uma coisa é você estar com os seus pensamentos, sejam eles como objetos, referências, filmes, músicas. Outra coisa é estar na frente da pessoa. Uma reunião é uma reunião, ver o vídeo em casa é outra coisa. Uma reunião é isso aqui. Estou sendo visto, não estou? Como eu estou aparecendo? O que eu acho disso? Será que vão ver a minha reação? Esse funcionamento de interlocução não é a mesma coisa no cinema. CAM: Eu acho que essa diferença de que fala o Daniel vem sendo de alguma maneira relativizada, ainda que poeticamente. Quando vê um filme como A falta que nos move, você tem a impressão de estar dentro de um presente que está acontecendo. Você tem muito menos a sensação de alguma coisa que foi feita, que foi gravada e está no passado… ED: Há uma busca ali dentro… DC: É engraçado como todo esse nosso papo fala muito da coisa da verdade da arte, de chegar a uma certa verdade, que é fundamental tanto para o cinema quanto para o teatro. Mas se a gente pensar na relação e na trajetória entre os dois, frequentemente passa por um elogio do falso, da construção. Da potência do falso. Orson Welles, Peter Brook, Ariane Mnouchkine são pessoas que fizeram essa interface ao longo de toda a vida. Fizeram filmes, fizeram peças. Sempre tem uma ideia da verdade da cena, a verdade do que está sendo feito. Não é a verdade de uma reprodução da vida ou de algo que de repente aparece como uma epifania. Não. É o elogio de uma construção também. ED: Eu tenho para mim que Hamlet fala muito disso. Desde o início ele fala assim: “Todas as lágrimas e as roupas negras jamais vão chegar ao nível da minha dor”. Só que no meio ele está fazendo teatro. E lá no final é tudo completamente relativo. O falso faz parte da experiência. CJ: O jogo do espelho, o simulacro… CAM: Christiane, como você vê essa coisa do presente e do passado? DS: No Julia tem a projeção da imagem, que foi pré-gravada antes do espetáculo. Digamos assim, o cinema do passado e a projeção da imagem gravada ao vivo na hora do espetáculo. E aí eu não sei se a gente poderia chamar de um cinema do presente. CAM: Live cinema. CJ: É totalmente live cinema. Você está vendo as duas coisas acontecerem no mesmo momento. E é engraçado essa coisa da comunicação que o Enrique está falando. Quando eu fui fazer o Julia, eu não sabia como ia ser visto. Não estou falando isso no sentido de ser aceito, ser bom, fazer sucesso. Não é isso, é como ia ser visto de verdade. De alguma forma, você está vendo teatro e os atores estão ali, mas ao mesmo tempo você está vendo cinema. Eu tenho muita vontade de conversar com as pessoas sobre como foi para elas verem a peça. Porque você é espectador de um set de filmagem e também espectador do filme pronto. Você vê todo o processo no mesmo momento porque você vê o filme sendo feito. ED: Acho que quem articula tudo é o teatro. CJ: Eu também acho, mas no Julia o cinema toma a frente em alguns momentos. Não só porque está sendo visto, mas porque tem horas que tudo vira só projeção. ED: Não que seja mais uma coisa do que a outra, mas quem articula é o teatro. O teatro pode pegar uma tela, trazer para cá e deixar meia hora. Mas foi o teatro que trouxe. A interface é o teatro. CJ: Está sendo feito no espaço do teatro. CAM: O cinema é o movie theater, o teatro do cinema. DS: É como se misturasse… Como se o cinema, que é uma manifestação tradicionalmente do passado, de repente tivesse a possibilidade de ser no presente também, na medida em que você está filmando na hora e projetando na hora, diante do espectador. Então, num certo sentido, você rompe essa natureza nostálgica do cinema. CJ: É talvez aí que ela faça a interface, nesse momento em que as coisas colidem, o teatro com o cinema. Mais até do que o fato de estar sendo projetado. LARM: E acho que tem um pouco da interface do cinema com a televisão. Quando a imagem se torna presente, a televisão vem um pouco nisso. A própria encenação do A falta lembra um pouco os reality shows. CJ: Essa é uma questão que está presente no nosso imaginário, está presente em todos os canais. Tem a coisa da casa. Só que as câmeras estão ali, você não esquece as câmeras. Eles estão atuando mesmo, e não fingindo que não estão atuando. ED: Mas tem uma coisa no A falta que também aponta para o reality, que é a crise, o pressuposto dramatúrgico básico da pessoa que não vem. O que é uma coisa muito do teatro. Ionesco, Beckett… Uma coisa que no teatro é claramente uma metáfora, um recurso. E não tem um dado de realidade, ele é falso. Aí quando você está suspendendo a descrença, você fala “isso é o quê mesmo?”. Tudo está em torno desse negócio artificial. Aí tem o lado do reality show porque é uma regra. Uma regra muito mais do que uma realidade. É um dispositivo. CJ: Na verdade, é uma ficção. ED: Quase todo filme, se não é documentário, é ficção. Mas você suspende a descrença e entra naquele mundo. Agora, dentro daquele mundo, tem uma coisa que claramente é mentira, porque tem essa herança do teatro, da metáfora. Naquela dramaturgia, não dá para aquilo ser verdade. Tem um negocinho que é teatral. E como o filme está entre uma coisa e outra, faz sentido que seja assim. CJ: O fato é que os atores acreditavam que o cara podia ir. Porque em alguns ensaios a gente levou alguém. A grande teia entre os personagens, o que eles discutem o tempo todo, são os dispositivos. Fazendo uma citação do [filósofo Giorgio] Agamben, é quando os dispositivos passam a ser a verdadeira ponte, a ponte relacional. Essa para mim é a grande questão. Como eu lido com a regra. Como eu lido com a ideia de que algo é dito e como é que eu interpreto. CAM: Vocês falaram que um registro “nunca vai ser um filme”. Mas pelo menos o Mentiras sinceras, único dos trabalhos do Pedro com o Grupo Armazém que eu conheço, para mim é claramente um filme. Não é um registro da peça, nem um making of . Num texto, eu até o chamei de thinking of da peça. Ali está uma tentativa de entender o processo de construção dessa peça, entender como cada ator trabalhou com isso, como a coisa foi se construindo. Pedro, nos outros trabalhos há também essa tentativa de ir além do making of e do mero registro, ou isso é uma característica específica do Mentiras sinceras? PA: O trabalho com o Armazém são os DVD de registro das cinco peças que fizemos até agora. O Mente mentira foi uma peça dirigida pelo Paulo, mas que não é do Armazém. Então, em relação ao meu próprio trabalho, esse é o primeiro longa que eu dirijo. Antes eu tinha feito alguns curtas e nenhum parecido com um making of ou nada desse tipo. A ideia do Mentiras foi sendo construída ao longo dos 14 meses em que a gente acompanhou o processo da peça. Também, claro, durante a montagem, mas de largada a gente tinha essa preocupação: não podemos cair na armadilha do making of. Então, usando inclusive essa coisa que eu estava falando antes de tentar criar no espectador a dúvida do que é e o que não é real, já aproveitando um pouco do próprio tema da peça, a gente foi filmando e tentando fazer um documentário que fosse interessante para quem não tivesse visto a peça e, ao mesmo tempo, que não tentava explicá-la nem tinha aquelas gracinhas típicas do making of. A equipe frequentou os ensaios por meses, então aos poucos os atores iam também se acostumando com a gente. Nós mesmos às vezes ficávamos em dúvida sobre quanto os atores estavam já atuando para a câmera, uma vez que eles sabiam que aquilo ia virar um filme, e se acostumaram com a nossa presença. Claro, são atores e estão também muito acostumados a dialogar com a câmera. Tudo ficava um pouco turvo sobre o que era real. Assim a gente foi chegando no que resultou o filme. A ideia era essa mesmo: fugir das armadilhas do making of. LARM: Tem momentos que parecem mesmo encenados, mas a encenação é a de um documentário. Você bota a câmera na frente de um ator, ele parece que está realmente dando um depoimento, mas aí você descobre que é uma fala do personagem. Você fica sem saber. Então, é interessante porque há uma inversão. PA: É que eu fiz, ao longo do processo, várias entrevistas com todos os atores e também com o Paulo. E teve uma rodada, digamos, de entrevistas que eu fiz com os atores, em que eu pedia para que eles respondessem a duas perguntas bastante pessoais, tanto como eles mesmos, atores, e depois como os personagens. Como o personagem que ele fazia na peça responderia àquela mesma pergunta. Então, a gente tinha ali, no mesmo cenário, com a mesma luz e tal, uma pessoa falando… ED: Isso é um exercício que a gente também faz no ensaio… DS: No teu filme e também no Moscou, vemos o processo com os atores, o diretor conduzindo os atores, ou seja, as coisas começando a se esboçar. Aí depois é como se cortasse e já mostrasse o ator conseguindo. Como se talvez não fosse possível registrar justamente esse momento de conquista. É como se nem tudo fosse possível de ser captado através da câmera, como se houvesse um lugar misterioso no trabalho do ator que não fosse possível de captar. Falo isso sem nenhum juízo de valor. É só uma coisa que me chamou a atenção nos dois filmes. ED: Eu não acho que seja um lugar misterioso, não. Você só capta se ficar lá olhando tudo o tempo todo. Outro dia recebi um e-mail incrível do Fernando Meirelles. Ele foi ver Hamlet, adorou e falou: “Deixa eu ver o ensaio um dia”. Eu respondi: “Primeiro, uma honra receber sua mensagem. Claro, ensaio, claro, contanto que você fique do começo ao fim todos os dias”. Só assim ele poderia ver quando o milagre acontece. Um dia só pode ser, e será com certeza, a coisa mais chata do mundo. Porque é só o tempo que faz. CAM: Tem os processos mentais, que às vezes são incapturáveis. Eu queria que o Pedro falasse um pouquinho sobre o ponto de vista do documentarista a respeito da captura desses momentos decisivos. PA: Pois é, isso felizmente aconteceu em alguns pontos específicos. Tem um momento que me marcou, que foi um exercício sugerido pela Patricia Selonk. Um grupo de atores está dançando e o Paulo está ao fundo vendo. Lá pelas tantas ele se levanta, chama o Zé [Zecarlos Machado] e a Roza [Grobman] e fala assim: “Porra! Pensei no final da peça!”. Isso foi uma supersorte, aconteceu porque a gente estava ali. Mas voltando a essa coisa do ensaio e de evitar o momento da dificuldade, eu admito que estava muito preocupado em não expor os atores. Obviamente, durante o processo do ensaio é justamente quando você está errando, quando você está tentando, experimentando, e também, óbvio, tem momentos de estresse entre atores, e entre atores e diretores e tal. Eu fui montando o filme e fazia questão de ir mostrando sempre alguma coisa aos atores e ao Paulo. Foi então que a Keli [a atriz Keli Freitas] falou: “Eu acho que você está pegando leve demais. Parece que é fácil, parece que não tem conflito”. A partir daí, aos poucos, eu fui me permitindo colocar isso. LARM: Isso, confesso também, foi uma coisa que me chamou atenção no teu filme. Parece que as coisas fluem e os conflitos eu percebo, mas eles estão bem minimizados. CJ: No making of ele vai mostrar tudo (risos). ED: Bafo…

Viewing all articles
Browse latest Browse all 10