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“A última palavra é a penúltima”
por Carlos Alberto Mattos
De todos os cineastas que fazem o trânsito entre cinema e teatro atualmente no Brasil, o mais ativo e inquieto é, sem dúvida, Evaldo Mocarzel. Seja escrevendo peças, seja filmando grupos de teatro paulistanos e experimentando diversas formas de interação entre os dois campos, Evaldo vive essa hibridez como nenhum outro. Sua prima Rejane deve ter muito a ver com isso. Ele localiza a semente de tudo num certo fim de semana da adolescência, passado na casa da prima e seu marido. Eles o levaram para uma maratona cultural que incluiu os filmes Gritos e sussurros (Ingmar Bergman, 1972) e Luzes da cidade (Charles Chaplin, 1931), e ainda uma encenação teatral de Antígona (Sófocles, 442 A.C.) na Sala Cecília Meireles. “Descobri naquele fim de semana as minhas duas grandes paixões siamesas, o cinema e o teatro, e também a minha tribo, a minha verdadeira família”, conta. O sonho de escrever peças e fazer filmes de ficção, acalentado desde então, foi por muito tempo adiado. Evaldo formou-se em cinema, fez muitos cursos de teatro, foi crítico de jornal e chegou a ocupar o lugar de editor do caderno de cultura de O Estado de S. Paulo antes de, finalmente, tornar-se um autor. Ainda nos tempos de jornalismo, participou por quatro anos do Centro de Dramaturgia do CPT de Antunes Filho, em São Paulo. Isso seria um prenúncio do que ele faz hoje: acompanha e interage fervorosamente com pelo menos cinco companhias de teatro. Dois personagens de À margem da imagem, seu primeiro documentário de longa metragem, inspirou sua peça RG, levada ao palco em 2004 com direção de José Renato, fundador do Teatro de Arena, e atuações de Ênio Gonçalves e José Ferro. A peça, por sua vez, poderá voltar ao cinema no roteiro de um curta ficcional escrito por Bruno Torres. O Evaldo Mocarzel dramaturgo já foi visto também na peça infantil É o bicho! A ordem natural das coisas, que excursionou pelo país em 2005 e fez mais de 70 mil espectadores; numa adaptação livre do Satyricon de Petrônio; e nas várias leituras de A caçada e Tragicomédia de um homem misógino. Em colaboração com o grupo Teatro da Vertigem, ele escreveu Kastelo, baseada nos sonhos de Kafka e encenada, dois anos atrás, em andaimes e cordas de rapel na fachada externa do Sesc Paulista. Kastelo, aliás, vai gerar um novo filme, misto de cinema, teatro e videoarte. E ainda tem mais: um texto inspirado em suas experiências de jornalista, Fome de notícia, deve estrear ainda este ano num teatro da capital paulista. Em futuro próximo, irão ao palco colaborações suas com Luís Alberto de Abreu e com a atriz Ana Beatriz Nogueira. Enumerar os projetos desse realizador pode ser fatigante e parecer exagero. Consultado para este artigo, ele forneceu uma lista de 20 trabalhos (recentes e em progresso) só na área de documentários e ensaios cinematográficos relacionados com o teatro. Não vamos reproduzi-la aqui, mas apenas dar uma ideia da diversidade de aproximações e tratamentos da cena teatral pelo aparato audiovisual. Acompanhar o processo de criação de um espetáculo é, para Evaldo, o ponto de partida de uma série de procedimentos que o próprio espetáculo vai sugerir. A proposta começou de maneira mais ou menos convencional com BR-3, a premiada encenação do Teatro da Vertigem nas águas e margens do rio Tietê. O filme homônimo é um díptico: um registro minucioso da peça, filmado com oito câmeras, e um documentário sobre o trabalho de criação do grupo, com imagens da encenação na Baía da Guanabara. Esse formato de registro + documentário começaria a sofrer intervenções a partir do encontro de Evaldo com o grupo Os Satyros, que transformou a degradada Praça Roosevelt num polo de inquietação teatral no centro de São Paulo. Disso já resultaram três diferentes experimentações. Numa delas, Evaldo documentou a volta da atriz transformista Phedra de Córdoba a sua Cuba natal, 53 anos depois de ter saído de lá e pouco depois de a lei cubana assegurar os direitos dos homossexuais. Cuba libre foi exibido no último Festival do Rio. Os outros módulos da trilogia sobre Os Satyros são Vila Verde, documentário sobre a instalação dramática que o grupo montou na periferia de Curitiba, misturando atores, atrizes e moradores da comunidade local; e Satyros, que focaliza a trajetória de 20 anos da companhia. Ambos estão em fase de montagem e finalização. Já pronto para exibição, A última palavra é a penúltima enfoca uma experiência conjunta do Teatro da Vertigem, a companhia anglo-brasileira Zikzira Physical Theatre e o grupo LOT, do Peru, numa galeria subterrânea abandonada na região central de São Paulo. Optando por uma variedade de pontos de vista e um trabalho intenso de montagem, esse filme é o primeiro dos que Evaldo chama de “documentários processuais”. Isso abrange um acompanhamento do processo de criação, um registro do espetáculo e sua posterior desconstrução a partir de tudo o que foi experimentado desde os ensaios. Ele explica: “Muita coisa bacana é experimentada em processos artísticos e depois jogada fora, ou vira uma pequena camada no espetáculo. Como documentarista, queria justamente esgarçar essas camadas. Há no processo conflitos, embates, enfim, muita coisa que pode e tem páthos documental”.Image may be NSFW.
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Exemplos característicos dessa nova fronteira em seu trabalho são os recém-concluídos longas Assombrações do Recife Velho e Hysteria. O primeiro tem como origem o livro homônimo de Gilberto Freyre, que inspirou a peça do grupo Os Fofos Encenam, montada em São Paulo. Quando eles decidiram apresentar o espetáculo em Recife, Evaldo propôs “devolver ao imaginário popular, através dos atores e das atrizes encarnando os personagens da peça, o que havia sido coletado no passado por Gilberto Freyre”. Assim, elenco e cineasta saíram às ruas da cidade arrecadando histórias de assombrações e fantasmas. Evaldo e o fotógrafo Cleisson Vidal colheram imagens de fantasmagorias arquitetônicas nas ruas do Recife Velho. O filme, montado pela artista visual Lea Van Steen, reúne essas imagens aos relatos populares e a breves aparições (no duplo sentido da palavra) de momentos da peça.
Em Hysteria, Evaldo parte das apresentações da peça do Grupo XIX de Teatro em casarões de 18 cidades de Santa Catarina, em 2009. Ava Rocha, que assina a codireção e a assaz idiossincrática montagem, compilou cenas descontínuas da peça – que implica participação ativa da plateia feminina em regime de “teatro da intimidade” – e ensaios ficcionais rodados com as atrizes em locações como praias, dunas, pomares, jardins e cascatas. Evaldo e Ava estavam em busca de uma tessitura de imagens e sons que remetesse ao essencialmente feminino. Hysteria, ambientada num manicômio, trata do lugar social da mulher no século XIX, confrontando a visão da época com a recepção da mulher contemporânea. Veja um trecho do trabalho.
A parceria do cineasta-dramaturgo tem sido convocada por artistas nas mais variadas situações. Quando a atriz Janaína Leite, do Grupo XIX, e o músico Felipe Teixeira (Fepa) resolveram transformar sua separação no “documentário cênico” Festa da separação, Evaldo foi chamado para interagir com suas câmeras. No momento, entre “n” outras coisas, ele está montando um documentário fílmico resultante dessa experiência.
Além do Teatro da Vertigem e dos grupos XIX, Os Satyros e Os Fofos Encenam, Evaldo tem se envolvido também com projetos da Cia. Livre, dirigida por Cibele Forjaz, a São Paulo Companhia de Dança e a coreógrafa Lia Rodrigues, com quem realizou um projeto cinecoreográfico numa comunidade da Maré, no Rio de Janeiro. Está preparando ainda um documentário sobre o trabalho da Companhia Estável de Teatro, com filmagens já realizadas numa escola do MST no bairro do Brás e na Flaskô, fábrica ocupada por operários no interior de São Paulo. Nesse capítulo mais politizado, vale citar Teatro contra a Barbárie, assumido panfleto poético contra o neoliberalismo no fomento à cultura, realizado sob influências de Santiago Alvarez, Fernando Solanas e da escola soviética.
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“Assombrações do Recife Velho”
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A hiperativade faz Evaldo Mocarzel dividir-se sempre entre muitos projetos. A maioria deles, se não todos, é realizada na base do “cinema de guerrilha”, sem muitos recursos mas com muita fome de filme. Seu entusiasmo frequentemente contagia colegas e técnicos que se juntam às suas aventuras. Prolixo em tudo, suas imensas cartas aos montadores já valeriam um livro.
O método de produção é igualmente aventureiro. Como todos esses trabalhos compreendem acompanhamento do processo teatral, registro do espetáculo e criação a partir de todo o material coletado, o acervo reunido se presta a diversas utilizações. O Canal Brasil exibiu recentemente a série Teatro sem Fronteiras, composta de oito programas de 25 minutos, editados a partir de oito desses trabalhos (veja trechos no site do canal). Com essa venda, Evaldo reuniu mais uns trocados para finalizar e montar as versões longas e autorais – este sim, o seu objetivo principal. Além, é claro, de escrever diretamente para o palco, perseguir o sonho do filme de ficção e continuar também no documentário social.
Ele jura que tem saúde e disposição para tanta coisa. Assim, tempo e algum dinheiro acabam aparecendo também.
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“Teatro contra a barbárie”